Na segunda-feira, quando vinha no comboio, aconteceu uma coisa aborrecida mas que acabou por se tornar um exercício estranho e engraçado. No Oriente, entrou um senhor que ocupou o lugar ao meu lado. Não se calou até eu descer, mais de três horas depois, e deve ter ficado calado enquanto eu adormeci, pouco mais de meia hora, esgotada, com princípios de enxaqueca, com vontade de lhe lançar um terrífico "deslargue, homem", capaz de assustar fantasmas. Achava-se culto e elegante... que D. Pedro mandara perseguir os conselheiros que tinham morto a Rainha Santa Isabel, arrancando-lhes o coração pelo peito... que gostava muito da Camel e da Timberland... Respondi-lhe que de amante a santa vai só um passo, mesmo que tenha de viajar para trás no tempo e conseguir um novo milagre das rosas, e apeteceu-me dizer-lhe que metesse os sapatos onde ele achasse melhor...
Achou por bem aborrecer-me com insinuações sobre a minha elegante forma de vestir, sobre o meu penteado, moderno e prático, sobre a minha incrível forma física (?), sobre a minha inteligência e simpatia (??? eu? euzinha?), que, com toda a certeza, o meu marido devia reconhecer todos os dias...
Às tantas, resolvi divertir-me, já que o comboio ia cheio, sempre com gente a entrar e a sair e não queria problemas com o lugar de ninguém. E inventei uma vida.
O que é que eu fazia? Nada, com a graça de Deus. Tinha feito um curso de economia e gestão de empresas mas, depois de cinco anos numa multinacional, voltara a estudar relações internacionais, e agora tinha-me dedicado mais à vida de família. Fazia voluntariado temporário em ong.s, sobretudo em cenários de guerra.
Quanto ao meu marido, que sim, que todos os dias de manhã me beijava e me dizia que eu era a mulher mais bonita do mundo. O meu marido era um homem absolutamente fantástico, bonito, com um sorriso do tamanho do mundo, um coração ainda maior, generoso, inteligente, culto, meigo e divertido. Não lhe disse qual era profissão dele... a bem dizer, com tantas qualidades, nem pensei muito nisso. Mas, acho que gostaria de tê-lo bem perto, todos os dias. In progress.
Filhos? Claro que sim, um menino e duas meninas, a crescerem, bem comportados e responsáveis. Que eu era uma mãe como não havia outra. E por aí adiante... que tínhamos um jardim, um cão e um gato...
Até que me cansei. Ele não. Continuou a falar, não sei de quê. Depois ri-me e pensei, arre, mulher, que trabalheira de viagem e de vida que tu foste arranjar...
E ri-me mais ainda quando pensei na trabalheira de vida ainda maior que tive. Mas nessa ele não iria acreditar.